09 August, 2010

Porquê eu não sou uma ferramenta

por Bruno Freire

Palavreação. Como organizar palavra e ação? 
Conceitos precisos fazem miséria com achismos. (HK) 
É sempre bom lembrar que corpo vazio está cheio de carne. (Chico revisitado) 
Onde está a carne carne? E onde está a carne metafórica?
A gente não passa de croquete, de um amontoado de carne. (Dzi Croquettes)

Antes de continuar eu gostaria de informar que eu estou aqui no lugar de outro. 

O que há num nome?
O conceito de ferramenta utilizado neste livro deve ser interpretado com uma certa ironia ambivalente. Mesmo porquê:
Ferramentas são utilizadas aos milhares. 
Ferramentas são da borracharia. 
Ferramentas são guardadas na caixa de ferramentas. 
Ferramentas são para usos específicos. 
Ferramentas são gerais. 
Ferramentas são para torcer. Ferramentas são para matelar. 
Ferramentas são ferramentas e não querem significar nada além de ferramentas. 
Ferramentas são a maravilha universal que fazem a máquina" hipermoderna caminhar, para a frente, rumo ao progresso. 

Cada vez mais usuários e menos designers de ferramentas. (Jorge Vieira revisitado) 
A chave de fenda existe e é útil, serve para parafusar e não serve muito bem para martelar. 
Parafuso das ideias. Torce retorce procuro mas não vejo...
O emprego desta palavra (ferramenta) tem significados diversos, às vezes, divergentes entre si. Algumas leituras podem ser (in)congruentes com o objetivo deste catálogo, outras não. O catalógo nada mais é do que um arquivo de um processo apresentado de forma organizada. Um registro de um processo de fabricação de ferramentas. Toda fábrica necessita de ferramentas, uma fábrica criativa necessita desenvolver suas próprias ferramentas de criação.  
Quando você não tem uma ferramenta, imite/copie de outra pessoa. 
De tanto utilizar a ferramenta do outro, ela se tornará sua.  

Excercício da Dúvida:
O que acontece quando grudamos a ideia de ferramenta no corpo? 
O corpo talvez não possa ser entendido, simplesmente, como a ferramenta "chave de fendas". Como um algo universal que funciona sempre para um mesmo fim, não importando muito o seu manuseio. O corpo não se parece com uma ferramenta, na medida em que ninguém (nenhum corpo) está depositado numa "caixa (de ferramentas)" à espera da sua vez de ser utilizado. Ao menos, idealmente, ninguém deveria estar por aí, guardado numa gaveta, esperando o dia de ser utilizado para um "fim específico". Esta ideia de ferramenta, soa como se cada corpo estivesse predestinado a um desígnio quase divino. À espera do seu chamado. 

Cada coisa em seu lugar... A mosca na aranha a aranha na velha e velha a fiar...

Nenhum corpo é uma ferramenta, o corpo pode no mínimo criar ferramentas para si e para outros.
Produzir ferramentas para fins inespecíficos.
Na fábrica, esta maravilhosa invenção mercantil, ferramentas são utilizadas o tempo todo. Úteis na economia do tempo. Economizando tempo, o corpo terá mais tempo para consumir mais e mais tempo. 
Na fábrica contemporânea, o tempo é o "bem" precisoso, valioso. Algumas fábricas para economizarem tempo, simplesmente não existem mais como fábrica, com instalação, se diluiram. Não pagam mais imposto sobre o lugar físico. Não tem trabalhadores, nem precisam prestar conta deste tipo de serviço. Abrem franquias. Os trabalhadores das franquias não estão mais vinculados à fábrica física, mas a ideia da fábrica. Carregam a marca. Os trabalhadores não obedecem ao patrão. Os trabalhadores são patrões. Cada patrão é patrão de si mesmo. São todos 'free to do what they want'. Mais ou menos. Lembre que a fábrica metafórica ainda existe, está apenas no lugar de outra e o patrão também, o patrão apenas está diluído agora, em vários patrões. O patrão está no lugar de outro. Este tipo de situação movimenta a sociedade. Promovendo uma dança social, entre ser patrão e ser empregado. 

Cuidado seu corpo está sendo coreografado de um modo tão encarnado que você não vai nem se dar conta.

O corpo, cotidianamente se elabora e reelaborase a partir de sua prática diária. Todo corpo "está sendo" atravessado pelo seu conjunto de hábitos diários. Os jornais que escolhe ler, os programas de televisão que escolhe assistir, os sites que frequenta, as aulas que decide fazer, os professores que decide ouvir, os amigos que resolvem se unir. O corpo escolhe, age no mundo e, muitas vezes, sem nem se dar conta desta escolha. Uma construção coreográfica diária. Qual a sua grafia urbana pela cidade? Quais escolhas que você realiza durante o seu processo de trabalho? Você deseja gastar seu tempo criando mais um espetáculo entre os milhares em cartaz, ou criar potências espetaculares, possibilidades de configurações? 

Cada escolha diária, mesmo que a gente não se dê conta dela, como o parafuso da fábrica. Conforme a gente repete um mesmo modo de escolher, aquelas ideias vão se prendendo no corpo, vão se apertando cada dia mais, até o momento em que a coisa fica quase tão atada, tão encarnada, que torna-se quase impossível retirar. Para extraílo, somente um fórceps-metafórico. 

O uso de uma ferramenta para criação em dança (arte) é imprevisível. Todos os fins delineados pela ferramenta artística deste catálogo, funcionam como uma sugestão, ou um campo de possibilidades de usos e desusos.